21 setembro 2012

Gastronomia e Literatura

                                                                       Foto : Corbis

É fato : a gastronomia está em toda parte. O prazer de comer  e de preparar verdadeiras obras de arte também encantaram os mais consagrados escritores , ao ponto de terem em suas obras , vastas citações e até mesmo receitas prediletas como é o caso de Machado de Assis. O exemplo mais farto é o de Eça de Queirós, cujas passagens  gastronômicas conta-se em mais de 2000.

Eça de Queirós e alguns jantares memoráveis

Em O Crime do Padre Amaro recorde-se o famoso jantar "todo cozinhado pelo abade de Cortegaça". Participaram o Padre Amaro, o Cónego Dias, o Padre Brito, o Padre Natário. Juntou-se a estes o Libaninho. Servia Gertrudes, "a velha e possante ama do abade".
O jantar: "vasta terrina de caldo de galinha" ("sopa"); cabidela;"côdea de pão ensopado no molho"; ("a cabidela hoje saiu-me boa!... de tentar Santo Antão no deserto!"); "pires de pimentões escarlates"; "frescas malgas de azeitonas pretas"; vagens; broa; "nacos brancos de peito do capão recheado", um bocadinho de asa; vinho da Bairrada em "bojudas canecas azuis"; arroz-doce (o"arrozinho"); vinho do Porto de 1815, de que "não se bebe todos os dias", castanhas molhadas no vinho, pão torrado, café ("todos cambaleavam um pouco, arrotando formidavelmente"), cigarros.
Em O Primo Basílio, há o sempre lembrado jantar do Conselheiro Acácio, para  celebrar sua nomeação ao grau de cavaleiro da Ordem de Sant'Iago.
Em A Capital, o jantar literário do Hotel Universal, oferecido por Artur Corvelo, que custou 22 libras.
Em Os Maias, João da Ega adiou o jantar no Hotel Central, para convertê-lo numa "festa de cerimónia em honra de Cohen". Dele participaram, além do anfitrião, o banqueiro Cohen, Carlos Eduardo, Craft, Dâmaso, Tomás de Alencar. Como aperitivo, foi servido vermute. Os criados serviram as ostras. Vinho branco: Bucelas; peixe; "sole normande"; vinho tinto: St. Émilion; poulet aux champignons; ervilhas em molho branco: petits pois à la Cohen; champanhe; ananases, nozes; café; chartreuses e licores; conhaque. O texto toma 24 páginas do romance.
Em A Cidade e as Serras, a José Fernandes, uma noite, Jacinto anuncia "uma festa no 202", por causa do Grão-Duque Casimiro, que lhe ia mandar "um peixe delicioso e muito raro que se pesca na Dalmácia". Em vez de almoço, o Grão-Duque reclamou uma ceia. Serviu-se um Porto de 1834, envelhecido nas adegas do avô Galião. O primeiro serviço: consommé frio com trufas. Vinho branco, Chateau- Yquem. E esperava-se agora o "peixe famoso da Dalmácia, o peixe de S. Alteza, o peixe inspirador da festa!". Eis que o mordomo "balbuciou uma confidência a Jacinto": o elevador dos pratos, ao subir o peixe de S. Alteza, inesperadamente se desarranjou e ficou encalhado. Todos os esforços foram em vão: o peixe permanecia na travessa, em baixo, na treva, entre rodelas de limão, "numa inércia de bronze eterno". O peixe foi abandonado. Serviu-se Chateau-Lagrange (um bordeaux St. Julien); o Barão de Pauillac (peça de carneiro que compreende a sela e as duas coxas); champanhe, ortolan (caça fina); champanhe coalhado em sorvete.
Ainda em A Cidade e as Serras, à chegada de Jacinto à quinta de Tormes, segue-se a primorosa narrativa do chamado "jantarinho de Suas Incelências que não demorará um credo."
E na Correspondência de Fradique Mendes, a cada instante, em cartas, em conversas, se lastima Fradique de não poder conseguir "um cozido vernáculo!"
(Fonte: http://users.prof2000.pt)





Machado de Assis, Relíquias culinárias
Este é o livro de Rosa Belluzzo, onde há  algumas comidinhas prediletas do escritor.

Dom Casmurro 

"Tínhamos chegado à janela; um preto, que, desde alguem tempo, vinha apregoando cocadas, parou em frente e perguntou: 
-Sinhazinha, qué cocada hoje ?
-Não - Respondeu Capitu.
-Cocadinha tá boa. 
-Vá-se embora - Replicou ela sem rispidez.
-Dê cá - Disse eu descendo o braço para receber duas.
Comprei-as, mas tiver de as comer sozinho; Capitu recusou.Vi que, em meio da crise, eu conservava um canto para as cocadas, o que tanto pode ser perfeição como imperfeição, mas o momento não é para defenições tais ; Fiquemos em que a minha amiga , apesar de equilibrada e lúcias, não quer saber do doce, e gostava muito de doce."



Carlos Drummond de Andrade
Em sua poema chamado A Mesa , o poeta fala de um jantar imaginário com a família :

A Mesa

"Ai, grande jantar mineiro
que seria esse. . . Comíamos,
e comer abria fome,
e comida era pretexto.
E nem mesmo precisávamos
ter apetite, que as coisas
deixavam-se espostejar,
e amanhã é que eram elas.
Nunca desdenhe o tutu.
Vá lá mais um torresminho.
E quanto ao peru? Farofa
há de ser acompanhada
de uma boa cachacínha,
não desfazendo em cerveja,
essa grande camarada.
ind’outro dia. . . Comer
guarda tamanha importância
que só o prato revele
o melhor, o mais humano
dos seres em sua treva?
Beber é pois tão sagrado
que só bebido meu mano
me desata seu queixume,
abrindo-me sua palma?
Sorver, papar: que comida
mais cheirosa, mais profunda
no seu tronco luso-árabe,
que a todos nos une em um
que a todos nos une em um
tal centímano glutão,
parlapatão e bonzão!"



Vinicius de Moraes e a carta ao amigo Tom Jobim

"Vou agora escrever para casa, pedindo dois menus diferentes para minha chegada. Para o almoço, um tutuzinho com torresmo, um lombinho de porco bem tostadinho, uma couvinha mineira e, doce de coco. Para o jantar, uma galinha ao molho pardo, com arroz bem soltinho e, papos de anjo. Mas daqueles que só a mãe da gente sabe fazer! Daqueles, que se a pessoa fosse honrada mesmo, só devia comer, metida em banho morno, em trevas totais, pensando no máximo, na mulher amada. Por aí, você vê como estou me sentindo; nem cá, nem lá!"


Jorge Amado
Dona Flor e Seu Dois Maridos , ensinando sua receita de Moqueca de Siri :
"Ralem duas cebolas, amassem o alho no pilão;
Cebola e alho não empestam,não, senhoras, são frutos da terra, perfumados. 
Piquem o coentro bempicado, a salsa, alguns tomates, a cebolinha e meio pimentão. 
Misturem tudo em azeite doce e a parte ponham esse molho de aromas suculento,(essas tolas acham a cebola fedorenta, que sabem elas dos odores puros?Vadinho gostava de comer cebola crua e seu beijo ardia). 
Lavem os sirisinteiros em água de limão, lavem bastante, mais um pouco ainda, paratirar o sujo sem lhes tirar porém a maresia.
 E agora a temperá-los: um aum no molho mergulhando, depois na frigideira colocando um a um, os siris com seu tempero. Espalhem o resto do molho por cima dos siris bemdevagar que esse prato é muito delicado. (ai, era o prato preferido de Vadinho!) 
Tomem de quatro tomates escolhidos, um pimentão, uma cebola,tudo por cima e em rodelas coloquem para dar um toque de beleza. no abafado por duas horas deixem a tomar gosto.
 Levem depois a frigideiraao fogo. (la ele mesmo comprar o siri mole, possuía fregues antigo, no Mercado . . .) Quando estiver quase cozido e só então juntem o leite decoco e no finzinho o azeite de dendê, pouco antes de tirar do fogo. (la provar o molho a todo instante. gosto mais apurado ninguém tinha). Ai está esse prato fino, requintado, da melhor cozinha, quem o fizer podegabar-se com razão de ser cozinheira de mão cheia.  Mas, se não tiver competência, é melhor não se meter nem todo mundo nasce artista do fogão.
 (Era o prato predileto de Vadinho nunca mais em minha mesa o servirei. Seus dentes mordiam o siri mole, seus lábios amarelos do dendê. Ai, nunca mais seus lábios, sua língua, nunca mais sua ardida boca de cebola crua ! )"





Érico Veríssimo . O tempo e o vento

"No fundo do quintal preparava-se o churrasco: dezenas de espetos fincados em bons nacos de carne estavam colocados sobre um longo valo raso, no fundo do qual luziam braseiros; a graxa derretida caía nas brasas, com um chiado, e uma fumaça cheirosa subia no ar, enquanto duas pretas de vez em quando mergulhavam ramos de pessegueiro dentro dum balde com salmoura e depois aspergiam os churrascos, trazendo os que ficavam prontos para a mesa, onde eram disputados aos gritos.
Os homens usavam suas próprias facas, que tiravam da cintura ou das botas, e com elas cortavam o assado, muitas vezes respingando o rosto com o sumo sangrento da carne. Nas barbas negras de alguns deles a farinha branquejava como geada sobre campo de macegas recém-queimado.
O dono da casa dirigia o jantar, gritava para os churrasqueadores, recomendando: “Um bem assado!” ou “Que venha uma boa costela!” ou ainda: “Um gordo aqui pró Chico Pinto!” No princípio da festa notara-se um silêncio um pouco constrangido."

18 junho 2012

Um prato chamado Família

Trechos do livro "O arroz de Palma" de Francisco Azevedo (Escritor Português).

"Família é prato difícil de preparar


São muitos ingredientes. 
Reunir todos é um problema...

...Não é para qualquer um. Os truques, os segredos, o imprevisível.

 Às vezes, dá até vontade de desistir...
...Mas a vida... sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o
apetite. O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os
lugares. Súbito, feito milagre, a família está servida.
Fulana sai a mais inteligente de todas. Beltrano veio no ponto, é o
mais brincalhão e comunicativo, unanimidade. Sicrano, quem diria?
Solou, endureceu, murchou antes do tempo. Este é o mais gordo,
generoso, farto, abundante. Aquele, o que surpreendeu e foi morar
longe. Ela, a mais apaixonada. A outra, a mais consistente...
...Já estão aí? Todos? Ótimo. Agora, ponha o avental, pegue a tábua, a
faca mais afiada e tome alguns cuidados. Logo, logo, você também
estará cheirando a alho e cebola. Não se envergonhe de chorar. Família
é prato que emociona. E a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou
de tristeza.
Primeiro cuidado: temperos exóticos alteram o sabor do parentesco.
Mas, se misturadas com delicadeza, estas especiarias, que quase sempre
vêm da África e do Oriente e nos parecem estranhas ao paladar tornam a
família muito mais colorida, interessante e saborosa.
Atenção também com os pesos e as medidas. Uma pitada a mais disso ou
daquilo e, pronto: é um verdadeiro desastre. Família é prato
extremamente sensível. Tudo tem de ser muito bem pesado, muito bem
medido. Outra coisa: é preciso ter boa mão, ser profissional.
Principalmente na hora que se decide meter a colher. Saber meter a
colher é verdadeira arte.
Uma grande amiga minha desandou a receita de toda a família, só porque
meteu a colher na hora errada.
O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família
perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe Família à Oswaldo Aranha;
Família à Rossini, Família à Belle Manière; Família ao Molho Pardo (em
que o sangue é fundamental para o preparo da iguaria).
Família é afinidade, é à Moda da Casa. E cada casa gosta de preparar a
família a seu jeito.
Há famílias doces. Outras, meio amargas. Outras apimentadíssimas. Há
também as que não têm gosto de nada, seria assim um tipo de Família
Dieta, que você suporta só para manter a linha. Seja como for, família
é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família
fria é insuportável, impossível de se engolir.
Enfim, receita de família não se copia, se inventa. A gente vai
aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia a
dia. A gente cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro
aqui, que ficou no pedaço de papel. Muita coisa se perde na lembrança.
Principalmente na cabeça de um velho já meio caduco como eu.
O que este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça,
por pior que s eja o paladar, família é prato que você tem que
experimentar e comer.
Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas. Passe o pão
naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou no
barro.
Aproveite ao máximo.
Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete